sábado, 10 de outubro de 2009

AS MINHAS MEMÓRIAS - A herdade - as feiras - os ciganos

A HERDADE

A herdade ficava quase no extremo do vale do Sado, a partir da sede da freguesia. Era bem uma hora de caminho, a partir desta, geralmente feito pela berma da via-férrea do vale do Sado. Eram cinco quilómetros difíceis de percorrer principalmente para uma criança. A herdade ou o “meu monte” como eu a tratava tinha nessa altura o aspecto contagiante do Alentejo, com todas as características do mundo rural da época de 50. O “monte” de que actualmente, apenas se conhece um amontoado de pedras acabou por ruir, no período a seguir ao 25 de Abril de 1974. Deixou de ter moradores, foi-se arruinando e hoje constitui para mim apenas uma recordação. Por vezes não resisto à saudade e visito o local e é com grande mágoa que deparo com aquelas ruínas, onde nasci em 1948. Ali cada metro de terreno tem uma história, é uma recordação da minha infância. Uma criança que aspirava pelos dias da feira de Abril ou da feira de Julho, quando os terrenos circundantes ao “monte” se enchiam de caravanas de ciganos. Então a magia do dia a dia transformava-se com as dezenas de crianças com quem podia brincar. E tanto que gostava de conviver com elas, criadas de uma forma completamente diferente da minha, a quem nada faltava. Elas que não tendo casa, vivendo a sua vida de nómadas, eram apesar disso tão felizes e sempre dispostos a umas brincadeirinhas. Hoje, gosto dos ciganos, admiro-os e magoa-me ouvir questões ligadas a xenofobia. Como recordo a cigana Vitalina que de ano a ano aparecia na herdade com mais um filho e já eram tantos! E o marido o Zé R. que, logo que acampava, fazia questão de se vestir a preceito, de fato cinzento, para ir cumprimentar o lavrador. E o Zé R. era sempre bem-vindo àquela herdade. Entrava na casa do lavrador, e logo lhe ofereciam uma cadeira para se sentar, e bebia e comia com o lavrador, porque era tido como um cigano de respeito e respeitador. Quando se envolviam em zaragatas, o que acontecia regularmente, logo o Zé R. era chamado a intervir e acalmar os ânimos. Em certa ocasião, devido aos amores de uma cigana por um trabalhador da herdade, foi tal a confusão, que meteu tiroteio e a intervenção da Guarda Nacional Republicana, chamada através da linha telefónica dos caminhos-de-ferro. Mas, dada a distância da Vila à herdade, quando ali chegou a patrulha, os ciganos tinham-se evaporado!
Em determinada ocasião o Lavrador, assim chamado por ser ele quem explorava as terras, por arrendamento, já que o proprietário, como a grande maioria dos proprietários das herdades, residiam longe da freguesia encomendou ao Zé R. um serviço de louça de porcelana. Isto foi num ano e no ano seguinte, eis que chega o Zé R. com a mercadoria. Colocado o caixote de madeira na cozinha, vimos abrir o mesmo e de lá saírem as mais lindas chávenas, pratos, terrinas etc. Naturalmente que, coisas de contrabando.
(continua)

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