sábado, 28 de novembro de 2009

AS MINHAS MEMÓRIAS E A CASA DO POVO

Resolvi intercalar aqui, por ser oportuno, dado o anúncio da aprovação pelo POPH da candidatura a Lar pela Casa do Povo, assim o exigir. Aliás estas crónicas que resolvi escrever neste espaço, devem ser um misto de factos passados, factos presentes e aspirações de futuro.
Neste contexto entendo por bem, descrever a minha vida de trabalho, ao longo dos anos, desde 1965 quando, após terminar o meu curso industrial em Beja, rumei para Almada, onde ingressei no Arsenal da Marinha, ou Arsenal do Alfeite, como aprendiz de serralheiro mecânico. Dos muitos factos existentes neste período da minha vida, darei conhecimento noutras crónicas. Em 1969 fui incorporado no exército, no CISMI- Centro de Instrução de Sargentos Milicianos em Tavira ( curiosamente entre a gíria militar, o CISMI, era conhecido por Centenas de Indivíduos Sacrificados Martirizados Inocentemente).
Daí rumei depois para a EPSM - Escola Pratica de Serviço de Material (na gíria Entram Parvos Saem Malucos) em Sacavém. Aí “aprendi” a ser mecânico de automóveis em 2 meses. Depois foi Elvas onde em 15 dias fiquei com a carta de condução.
Fui depois colocado na EPA – Escola Pratica de Artilharia em Vendas Novas, já promovido a cabo miliciano. E foi daí que, já com dezassete meses de serviço militar, recebi a guia de marcha para a Guiné, passando primeiro por Chaves e depois por Viana do Castelo e finalmente pelo cais de Alcântara embarcando no navio Carvalho Araújo, com destino à guerra colonial na Guiné. Sobre este período igualmente relatarei em separado os bons e os maus momentos passados na guerra.
Regressado, em 1972 (infelizmente, como tantos outros, sofrendo de stress pós traumático de guerra), voltei novamente ao Arsenal do Alfeite, donde em 1976, saí para a Casa do Povo de Alvalade, após ter efectuado provas que me habilitaram a categoria de escriturário.
E neste relato bastante resumido cheguei à minha ligação com a Casa do Povo, onde, após ter ingressado na função pública ao serviço da Segurança Social, me aposentei antecipadamente em Agosto de 2006.
Hoje continuo ligado à Casa do Povo de Alvalade, como dirigente da mesma. E foi nesta qualidade que, no passado dia 24 de Novembro de 2009, tomei conhecimento de que havia sido deferida a nossa candidatura à construção do Lar para Idosos, uma velha aspiração, felizmente concretizada ou em vias disso. Muito trabalho vai haver ainda pela frente, muitas preocupações, principalmente com o enorme endividamento que a Casa do Povo irá contrair para poder levar por diante a construção deste equipamento social. Alvalade está pois de parabéns. A Casa do Povo de Alvalade, que há poucos anos conseguiu dotar esta localidade de um outro equipamento social – o Centro de Dia, considerado um dos melhores do litoral alentejano, vê agora pela frente a possibilidade de concorrer ainda mais para o desenvolvimento local. Assim Deus nos ajude e a justiça dos homens o permita!

terça-feira, 17 de novembro de 2009

AS MINHAS MEMÓRIAS Os roubos no Monte

OS ROUBOS NO MONTE


As espingardas destinavam-se à caça e não só, também à defesa do “monte” pois os assaltantes de vez em quando, rondavam.
Por vezes a meio da noite, os cães ladravam muito , sinal de que gente estranha por ali andaria. Então o Toino, sem fazer ruído, para não me acordar, saía em roupa interior para a rua, armado da espingarda, a fim de efectuar a sua ronda. O pior era, quando eu acordava e não o via na cama – o medo tomava conta de mim – quem me dizia que, encontrando-se o Toino na rua, os ladrões não aproveitariam a sua ausência para entrarem em casa? E aí o choro irrompia terminando apenas, quando a sua presença se concretizava.
Lembro-me ainda de que, em certa ocasião, sempre às sextas-feiras, roubavam porcos no monte. O esquisito é que era sempre as sextas feiras. O mistério pairava no ar e todos se questionavam quem seriam os ladrões, que tinham todo o tempo, para nas “ quartelhas”, local distante do monte uns 300 metros, onde ficavam os porcos, retirarem os mesmos, carregá-los, sem que se ouvisse quaisquer barulhos ou motores a trabalharem. Possivelmente, os ladroes levavam-nos para um local ermo e distante e aí seriam então carregados para a camioneta. A GNR foi informada, faziam rondas segundo diziam, mas nunca se soube quem eram os larápios. .
Certa vez, minha mãe, acompanhada pela mulher do ovelheiro, passaram já noite fechada junto às quartelhas dos porcos e minha mãe viu dois vultos em cima duma árvore. Para não assustar a companheira que sofria de coração, calou-se e quando chegou ao “ monte”, pegou numa espingarda e aí vai ela, sozinha, determinada a estoirar os miolos a quem estivesse em cima da árvore. Felizmente já lá não estavam, pois caso contrário, minha mãe estaria sujeita a passar o resto dos seus dias numa prisão.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

AS MINHAS MEMÓRIAS - minha espingardinha

A MINHA ESPINGARDINHA

Gostaria de descrever aqui o momento que foi, a minha ultima conversa com o Toino. Posteriormente eu parti para a guerra colonial na Guiné e durante a minha ausência ele partiu. Foi aí, junto à fonte do Valverde, a cerca de três quilómetros de Alvalade, que ele me disse e hoje não existem testemunhas do facto, que a “espingardinha” estava na posse de um familiar e que se eu quisesse a levava comigo naquele preciso momento. Recusei, dizendo que quando regressasse da guerra ele ma daria. Mal sabia eu que isso jamais aconteceria. A “espingardinha” tem história e para que se compreenda, vou tentar resumir a mesma. Na casa do Toino – lavrador – havia uma espingarda de dois canos e cartuchos de 9 milímetros. Essa espingarda havia pertencido a um seu irmão, já falecido, chamado Luís. Foi por isso mesmo, que o meu padrinho, sobrinho do Toino, com o consentimento de minha madrinha resolveram que eu me chamasse Luís. O Toino dizia sempre que aquela espingarda – “a espingardinha” me pertencia. Quis o destino que nunca tivesse ficado com mais essa recordação do Toino. Onde anda a espingardinha?
O Toino está sepultado no cemitério de Alvalade, na rua principal do mesmo, numa campa ornamentada com gradeamento de ferro. A manutenção dessa sepultura tem estado sempre a meu cargo e era meu desejo que depois de mim, os meus sucessores o continuassem a fazer. Esta a minha HOMENAGEM a essa figura muito querida e que jamais poderei esquecer – O Toino – António Alvalade, de seu nome.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

MINHAS MEMÓRIAS - Minha homenagem ao Toino (António Alvalade)

A MINHA HOMENAGEM AO HOMEM QUE FOI PARA MIM – O PAI DE CRIAÇÃO (como ele tantas vezes dizia)
Cabe aqui recordar a pessoa que para mim foi pai, não biológico, mas na falta deste o verdadeiro amigo e protector. O Toino era portador de um bom coração, um coração generoso e solidário. Se assim não fosse como se compreenderia que tivesse tomado a seus cargo os filhos de um maioral, que faleceu com vinte e cinco anos de idade? Ele os criou, ele os apaparicava, como se seus filhos fossem, ele que nunca casou, nem nunca foi pai, tomou para si o encargo de criar os dois filhos do criado, dando-lhes a educação e ensinamentos que na altura era possível dar, a quem algumas posses tinha. Ele que por esse facto foi praticamente ignorado, incluindo familiares, a quem a palavra solidariedade jamais existiu,. A mim e a minha irmã, mandou-nos para Beja, a fim de estudarmos, na Escola Industrial e Comercial, e aí tiramos nossos cursos secundários..
O Toino morreu, quando eu me encontrava na Guiné ma guerra colonial e minha irmã se encontrava já, emigrante em França .Ainda me recordo de como, a milhares de quilómetros, recebi a notícia. Na Guiné só se conseguia comunicação com o continente, por via telefónica, através da rádio Marconi. E para tal o aviso chegava num dia e a comunicação via telefone, no dia seguinte. E assim, foi, que minha mãe me deu a noticia da morte do Toino. Recebi a notícia e de imediato me fechei no meu quarto e tentei chorar, mas não consegui. Nesse dia comuniquei ao capitão que não me sentia bom de saúde e fiquei na cama todo o dia. Não falei do assunto a ninguém, pois ninguém iria compreender os meus sentimentos. Vivi sozinho esse momento difícil. Recordei então o dia em que, antes de embarcar para a guerra me fui despedir do Toino. Nessa altura vivia ele, não na herdade, mas numa outra, mais pequena, o Valverde, com uma sobrinha. Minha mãe residia na Vila, mas ele, habituado a toda uma vida no campo, preferia viver com a sobrinha. E foi aí, no Valverde, junto à fonte, que eu falei a ultima vez com o Toino. Foi aí que me despedi, com a incerteza de voltar vivo da guerra.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

AS MINHAS MEMÓRIAS - Os Malteses - 1 - O Reu-Reu

OS MALTESES-1

O RÉU - RÉU


E que alegria, que felicidade, eu via, no rosto de um pobre que naqueles dias se aproximava do “monte”, pedindo esmola. Os tempos eram difíceis, a miséria era muita e pelos montes deambulavam pessoas, esfarrapadas, descalças, pedindo a esmola de algo com que matar a fome. Chamavam-lhe os “malteses” e eram o terror da criançada entre a qual me incluía. No entanto qualquer um destes homens e mulheres, porque também as havia, eram pessoas de sentimentos, a quem a desgraça e a miséria bateu à porta. Salazar proibia a mendicidade e lembro-me até que, aquando da visita da Rainha Isabel II de Inglaterra a Portugal (década de 50), foram dadas ordens à GNR para prender todos os pedintes pelo País, a fim de se iludirem os ilustres visitantes, com a ideia de que em Portugal, não havia miséria!
Dos malteses que retenho na ideia, menciono dois, que regularmente visitavam o “monte”, pedindo esmola, na casa do lavrador e só nessa casa. Nas casas dos criados, geralmente não pediam. Pedir o quê? A quem também sofria de necessidades?
E, assim, eu recordo Réu Réu e a Mari`Franca.
O Réu Réu, era um mendigo, com problemas psíquicos, homem dos seus 50 anos, mas que aparentava muito menos. As pessoas, dada a sua ignorância, riam-se com as palavras do Réu Réu. Retenho ainda quando se lhe perguntava a idade:
-tenho 50 anos
- e a sua mãe?
- A minha mãe tem 18 anos!
Ou então quando se colocava uma caixa de fósforos no chão e se lhe pedia que saltasse a caixa, respondia:
-Isso é que eu não faço!
- Não fazes? Porquê?
- Era o que faltava! para cair e partir os ossos todos?!
Era assim o nosso Réu-Réu. Desconheço como findou os seus dias, mas não é difícil adivinhar. Em qualquer um barranco, na esquina duma casa abandonada, sei lá. Morreu certamente como um mendigo, abandonado e sem família, como tantos outros por esse Alentejo fora. Recordá-lo é apenas o que nos resta.


MALTESES - 2

A MARI´FRANCA

Agora a Mari Franca. A Mari Franca era o meu terror. Minha mãe, quando me portava mal e não queria usar as mãos como reprimenda, ameaçava-me:
- Olha que entrego-te à Mari Franca!
E eu, imediatamente parava com a diabrura.
A Mari Franca aparecia só de tempos a tempos. Coxeava duma perna e consigo trazia sempre imensos filhos, que a acompanhavam de lugar em lugar. Inválida, não podia trabalhar e para alimentar todos aqueles filhos só tinha uma solução. Pedir de herdade em herdade. Quando se avistava ao longe, todos diziam:
-Lá vem a Mari Franca!
Chegava à rua do “monte”, e parece-me ainda ouvir o cumprimento que fazia a minha mãe:
Atão Bilanja como vai?
E a minha mãe, respondia com o gesto que fazia, quando algum desgraçado batia à porta. Trazia consigo dois ou três pães, um bocado de toicinho e dizia:
-Vá Mari Franca, abre lá o saco!
A minha mãe podia ser muito rude, mas tinha um coração do tamanho do mundo. E, embora não fosse ela a lavradora, tinha todo o à vontade para repartir com os mais necessitados. E dali nenhum pedinte ou mendigo abalava com o saco vazio.
A Mari Franca tinha um defeito, entre muitos. Gostava de lançar a mão ao alheio. E certa vez em que minha mãe tinha os lençóis a “corar” (ao sol a secarem, estendidos na lenha), a Mari Franca ao passar, não esteve com mais aquelas`- lençóis para dentro do saco.
Quando passado algum tempo, minha mãe foi recolhê-los, encontrou lá o lugar dos mesmos. E imediatamente, no seu jeito, disse:
-Magana da Mari Franca, que me roubou os lençóis!
E aí vai ela, no encalço da mendiga e quando a encontrou, disse-lhe:
-Olha lá oh estupor! Então eu com pena de ti, dei-te esmola e tu roubaste-me os lençóis?
A Mari Franca, retorquiu: - Eu Bilanja? Era lá capaz duma coisa dessas?
Não foste tu – disse-lhe minha mãe – quem mais poderia ser? Despeja lá o saco!
E, naturalmente que, de dentro do mesmo, juntamente com o pão e o toicinho, saíram os lençóis.
-Ai Bilanja, tem pena desta desgraçada!
E, a minha mãe, ficava sem palavras, retirava-se levando consigo os lençóis e esquecia tudo.
A Mari Franca mais tarde foi internada num hospício existente perto de Beja, a quinta de S. José. E por lá viveu e morreu. Hoje ninguém fala na Mari Franca, que certamente deve ter filhos espalhados por esse Alentejo.
A minha mãe sabia ser dura e forte, quando era necessário, mas também compreendia as necessidades por que os outros passavam e desta forma ajudou muita gente, que a ela se lhe dirigia. Muitas vezes prejudicando-se a ela e a nós os filhos, para ajudar os outros.
Infelizmente muitos se esqueceram disso, mas a recompensa das boas acções reside na felicidade de quem as pratica e de quem as recebe.