quinta-feira, 5 de novembro de 2009

AS MINHAS MEMÓRIAS - Os Malteses - 1 - O Reu-Reu

OS MALTESES-1

O RÉU - RÉU


E que alegria, que felicidade, eu via, no rosto de um pobre que naqueles dias se aproximava do “monte”, pedindo esmola. Os tempos eram difíceis, a miséria era muita e pelos montes deambulavam pessoas, esfarrapadas, descalças, pedindo a esmola de algo com que matar a fome. Chamavam-lhe os “malteses” e eram o terror da criançada entre a qual me incluía. No entanto qualquer um destes homens e mulheres, porque também as havia, eram pessoas de sentimentos, a quem a desgraça e a miséria bateu à porta. Salazar proibia a mendicidade e lembro-me até que, aquando da visita da Rainha Isabel II de Inglaterra a Portugal (década de 50), foram dadas ordens à GNR para prender todos os pedintes pelo País, a fim de se iludirem os ilustres visitantes, com a ideia de que em Portugal, não havia miséria!
Dos malteses que retenho na ideia, menciono dois, que regularmente visitavam o “monte”, pedindo esmola, na casa do lavrador e só nessa casa. Nas casas dos criados, geralmente não pediam. Pedir o quê? A quem também sofria de necessidades?
E, assim, eu recordo Réu Réu e a Mari`Franca.
O Réu Réu, era um mendigo, com problemas psíquicos, homem dos seus 50 anos, mas que aparentava muito menos. As pessoas, dada a sua ignorância, riam-se com as palavras do Réu Réu. Retenho ainda quando se lhe perguntava a idade:
-tenho 50 anos
- e a sua mãe?
- A minha mãe tem 18 anos!
Ou então quando se colocava uma caixa de fósforos no chão e se lhe pedia que saltasse a caixa, respondia:
-Isso é que eu não faço!
- Não fazes? Porquê?
- Era o que faltava! para cair e partir os ossos todos?!
Era assim o nosso Réu-Réu. Desconheço como findou os seus dias, mas não é difícil adivinhar. Em qualquer um barranco, na esquina duma casa abandonada, sei lá. Morreu certamente como um mendigo, abandonado e sem família, como tantos outros por esse Alentejo fora. Recordá-lo é apenas o que nos resta.


MALTESES - 2

A MARI´FRANCA

Agora a Mari Franca. A Mari Franca era o meu terror. Minha mãe, quando me portava mal e não queria usar as mãos como reprimenda, ameaçava-me:
- Olha que entrego-te à Mari Franca!
E eu, imediatamente parava com a diabrura.
A Mari Franca aparecia só de tempos a tempos. Coxeava duma perna e consigo trazia sempre imensos filhos, que a acompanhavam de lugar em lugar. Inválida, não podia trabalhar e para alimentar todos aqueles filhos só tinha uma solução. Pedir de herdade em herdade. Quando se avistava ao longe, todos diziam:
-Lá vem a Mari Franca!
Chegava à rua do “monte”, e parece-me ainda ouvir o cumprimento que fazia a minha mãe:
Atão Bilanja como vai?
E a minha mãe, respondia com o gesto que fazia, quando algum desgraçado batia à porta. Trazia consigo dois ou três pães, um bocado de toicinho e dizia:
-Vá Mari Franca, abre lá o saco!
A minha mãe podia ser muito rude, mas tinha um coração do tamanho do mundo. E, embora não fosse ela a lavradora, tinha todo o à vontade para repartir com os mais necessitados. E dali nenhum pedinte ou mendigo abalava com o saco vazio.
A Mari Franca tinha um defeito, entre muitos. Gostava de lançar a mão ao alheio. E certa vez em que minha mãe tinha os lençóis a “corar” (ao sol a secarem, estendidos na lenha), a Mari Franca ao passar, não esteve com mais aquelas`- lençóis para dentro do saco.
Quando passado algum tempo, minha mãe foi recolhê-los, encontrou lá o lugar dos mesmos. E imediatamente, no seu jeito, disse:
-Magana da Mari Franca, que me roubou os lençóis!
E aí vai ela, no encalço da mendiga e quando a encontrou, disse-lhe:
-Olha lá oh estupor! Então eu com pena de ti, dei-te esmola e tu roubaste-me os lençóis?
A Mari Franca, retorquiu: - Eu Bilanja? Era lá capaz duma coisa dessas?
Não foste tu – disse-lhe minha mãe – quem mais poderia ser? Despeja lá o saco!
E, naturalmente que, de dentro do mesmo, juntamente com o pão e o toicinho, saíram os lençóis.
-Ai Bilanja, tem pena desta desgraçada!
E, a minha mãe, ficava sem palavras, retirava-se levando consigo os lençóis e esquecia tudo.
A Mari Franca mais tarde foi internada num hospício existente perto de Beja, a quinta de S. José. E por lá viveu e morreu. Hoje ninguém fala na Mari Franca, que certamente deve ter filhos espalhados por esse Alentejo.
A minha mãe sabia ser dura e forte, quando era necessário, mas também compreendia as necessidades por que os outros passavam e desta forma ajudou muita gente, que a ela se lhe dirigia. Muitas vezes prejudicando-se a ela e a nós os filhos, para ajudar os outros.
Infelizmente muitos se esqueceram disso, mas a recompensa das boas acções reside na felicidade de quem as pratica e de quem as recebe.

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